segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Por que Semana de Arte Moderna ainda é um marco da cultura 100 anos depois

 André Bernardo

Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil

 CRÉDITO,DIVULGAÇÃO

Em janeiro de 1952, o poeta Manuel Bandeira (1886-1968) precisou comparecer a uma sessão solene na Academia Brasileira de Letras (ABL), no Centro do Rio, para os 30 anos da Semana de Arte Moderna.

Na época, o ocupante da cadeira 24, então com 66 anos, passava os dias em Teresópolis, na região serrana do Estado, onde se tratava de tuberculose.

 porta do Petit Trianon, um repórter do extinto Diário Carioca solicitou uma entrevista. "Estou farto de falar e de ouvir falar sobre modernismo", resmungou o poeta. "Tudo o que eu tinha para dizer eu já disse".

Diante da insistência do rapaz, prosseguiu: "Acho perfeitamente dispensável. Que esperassem o centenário. Se no ano 2022 ainda se lembrarem disso, então, sim".

Um século depois, a Semana de Arte Moderna ainda é lembrada como um marco da cultura brasileira.

"Nem todo mundo pensa a Semana de 22 do mesmo jeito. Algumas interpretações são mais críticas. Outras, mais laudatórias", afirma o historiador Lucas De Nicola, coautor de Semana de 22 — Antes do começo, depois do fim (Estação Brasil).

"O inegável é que a Semana de Arte Moderna virou um marco. Um marco de inovação e criatividade".

Por motivo de saúde, Manuel Bandeira não participou da Semana de 22, mas autorizou o poeta Ronald de Carvalho (1893-1935) a declamar os versos de Os sapos (1919), que ironizava a poesia parnasiana, a inimiga número um dos modernistas.

"Uma das conquistas daquele grupo foi a revolução estética", completa o professor José De Nicola, de Semana de 22. "Insatisfeitos, romperam com os padrões da época e saíram em busca de novas formas de expressão".

A leitura de Os sapos foi o ponto alto da segunda das três noites da Semana de Arte Moderna, realizada entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922. Revoltado, o público reagiu com vaias, gritos e assobios.

Para o poeta Mário de Andrade (1893-1945), Bandeira era o "João Batista do Modernismo". Já o historiador Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982) apelidou Os sapos de "hino nacional dos modernistas".

Um carioca entre os paulistas

Até hoje, não se sabe ao certo de quem partiu a ideia de reunir um grupo de artistas e intelectuais paulistas e organizar uma semana de exposições de pinturas, recitais de poesia e apresentações musicais no Theatro Municipal de São Paulo.

Por ironia do destino, a ideia pode ser creditada, segundo alguns autores, a um carioca: o pintor Emiliano Di Cavalcanti (1897-1976).

Foi ele que, em novembro de 1921, teria desabafado ao amigo Rubens Borba de Moraes (1899-1986): "Esse negócio de exposiçãozinha individual é coisa do passado! O que é preciso é fazer uma grande exposição de arte moderna, um salon des indépendants, ou coisa que o valha. Sei lá o quê, uma coisa que sacuda a indiferença do público!".

CRÉDITO,DIVULGAÇÃO/COMPANHIA DAS LETRAS

Até hoje, não se sabe ao certo de quem partiu a ideia de reunir

 artistas e intelectuais paulistas no Theatro Municipal

A princípio, o tal "salão dos independentes" idealizado por Di Cavalcanti seria realizado numa modesta 

livraria de São Paulo, O Livro, de propriedade de Jacinto Silva.

Não foi assim por sugestão do diplomata Graça Aranha (1868-1931). Em visita à exposição do pintor carioca, o autor de Canaã (1902) demonstrou interesse em conhecer "a mocidade literária e artística de São Paulo".

Entre novembro e dezembro de 1921, Di Cavalcanti apresentou a Graça Aranha nomes como Mário de Andrade, Oswald de Andrade (1890-1954), Menotti Del Picchia (1892-1988) e Anita Malfatti (1889-1964).

Entre uma conversa e outra, a ideia de criar uma mostra coletiva começou a ganhar força. Ao fim do terceiro encontro, em 7 de dezembro de 1921, Graça Aranha entregou a Di Cavalcanti um cartão do empresário Paulo Prado (1869-1943).

Aos encontros na livraria O Livro, na rua Boa Vista, seguiram-se outros, no palacete de Paulo Prado, na avenida Higienópolis. O entusiasmo era tanto que, a certa altura, alguém chegou a sugerir que o evento durasse um mês inteiro.

"Não tínhamos munição para guerra tão longa", protestou um dos presentes. Foi quando, inspirada na Semaine de Fêtes de Deauville, um festival de música, pintura e moda em um elegante balneário francês, Marinette Prado, mulher do anfitrião, sugeriu fazer uma Semana de Arte Moderna.

CRÉDITO,ACERVO BIBLIOTECA NACIONAL

Intelectuais se reúnem em homenagem ao produtor de 

café Paulo Prado, considerado o "mecenas" da Semana de 22

Definidos o nome e o tempo de duração do evento, só faltava acertar o lugar. A livraria O Livro foi considerada pequena demais para as pretensões do grupo e alguém propôs o majestoso Theatro Municipal de São Paulo, inaugurado em 12 de setembro de 1911, para sediar a exposição.

Caberia ao produtor de café Paulo Prado o papel de "mecenas" da Semana de 22. A ele, logo se juntaram outros: políticos, banqueiros, empresários...

"O principal legado da Semana foi despertar uma consciência de modernidade no campo artístico brasileiro e gerar um importante debate na sociedade da época sobre o que era ser moderno no Brasil", avalia a curadora Andreia Vigo, da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.

Gênios ou loucos?

A primeira das três noites da Semana de Arte Moderna, dedicada às artes plásticas, aconteceu no dia 13 de fevereiro.

Ao todo, quase 100 peças, de telas de Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Vicente do Rego Monteiro (1899-1970) a esculturas de Victor Brecheret (1894-1955), entre outros artistas, foram expostas no saguão do Theatro Municipal. 

CRÉDITO,KARINA BACCI/DIVULGAÇÃO

Folheto da Semana de Arte Moderna

"O movimento modernista foi muito maior que a Semana de Arte Moderna", explica o historiador Yussef Campos, organizador de Inda bebo no copo dos outros — Por uma estética modernista (Editora Autêntica).

"Tarsila do Amaral, por exemplo, não participou da Semana, embora seja um dos nomes mais importantes de um movimento que, como maior legado, provocou a renovação da linguagem, a ponto de Mário de Andrade dizer que escrevia brasileiro". De viagem pela Europa, Tarsila do Amaral só desembarcou no Brasil em junho de 1922.

Muitas das telas de Anita Malfatti expostas na Semana de 22, como A estudante russa, O homem amarelo e A mulher de cabelos verdes, pintadas durante seu estágio em Nova Iorque, eram as mesmas da exposição de 1917, em uma galeria da rua Líbero Badaró.

Na ocasião, a obra da pintora foi duramente criticada pelo escritor Monteiro Lobato (1882-1948) que, em polêmico artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em dezembro de 1917, comparou a arte moderna aos "desenhos que ornam as paredes dos manicômios".

Cinco anos depois, a obra de Anita Malfatti voltou a escandalizar o público conservador da época. Muitos chegaram a se perguntar se as telas não tinham sido expostas de cabeça para baixo.

Em sinal de protesto, alguns visitantes colocaram bilhetes anônimos, com ofensas e insultos, atrás dos quadros. 

CRÉDITO,KARINA BACCI/DIVULGAÇÃO

Monteiro Lobato comparou a arte moderna aos 

'desenhos que ornam as paredes dos manicômios'

"A Semana de 22 não nasceu do nada. Houve uma exposição anterior, a da Anita Malfatti, em 1917, que desbravou caminhos para o modernismo no Brasil", afirma o filósofo Cauê Alves, curador-chefe do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP).

"Marcos existem para ser questionados. A ideia da Semana como um marco do modernismo brasileiro precisa ser motivo de questionamento e não de celebração."

Além da exposição propriamente dita, houve duas conferências: "A emoção estética na arte moderna", ministrada por Graça Aranha, e "A pintura e a escultura moderna do Brasil", dada por Ronald de Carvalho.

Por fim, o pianista Ernani Braga (1888-1948) tocou algumas peças do compositor Heitor Villa-Lobos (1887-1959), como Três danças africanas.

"Não há registros da Semana de 22. Não temos fotos, áudios ou vídeos. Apenas os textos que foram publicados nos jornais e, anos depois, os livros de memória escritos pelos protagonistas", explica a pesquisadora Gênese Andrade, professora de Literatura da FAAP e organizadora do livro Modernismos 1922-2022 (Companhia das Letras).

Entre gritos e vaias

A segunda noite da Semana de Arte Moderna — ou "festival", como preferiam os modernistas — aconteceu no dia 15 e foi dedicada à literatura e à poesia.

No palco do Municipal, Oswald de Andrade leu trechos de Os condenados, e Mário de Andrade recitou versos de Inspiração.

"Como tive coragem para dizer versos diante duma vaia tão barulhenta?", indagou o autor de Pauliceia Desvairada na conferência "O movimento modernista" (1942).

CRÉDITO,ACERVO OSWALDO DE ANDRADE

Oswald de Andrade leu trechos de Os condenados

Não satisfeito em vaiar, o público ainda soltou gargalhadas, proferiu impropérios e arremessou tomates e batatas no palco.

Sem acreditar no que via e ouvia, Ronald de Carvalho chegou a cogitar a hipótese de Oswald de Andrade, o maior polemista do grupo, ter chamado alguns calouros da Faculdade de Direito para fazer algazarra e gerar controvérsia.

"O fato de eles terem sido vaiados foi visto como algo positivo. O que eles queriam mesmo era virar notícia. Era uma forma de promover a causa", observa a crítica de arte Heloísa Espada, curadora do Instituto Moreira Salles (IMS), que inaugura, em setembro, a mostra "Modernidade Fora de Foco — Foto e filme no Brasil, 1889-1930".

"É preciso deixar claro que a Semana de 22 é só uma amostra do modernismo no país. Não é sinônimo ou resumo de arte moderna no Brasil".

Os ânimos só se acalmaram quando a pianista Guiomar Novaes (1894-1979) executou peças de Debussy, Chopin e Villa-Lobos.

"A Semana de Arte Moderna está para acabar!", noticiou, em tom gaiato, o Jornal do Comércio, na edição do dia 18. "É pena! Como divertimento, foi insuperável".

Teve mais. "A semana de arte moderna foi um assunto magnífico para desopilantes piadas", acrescentou Joaquim Feijó em crônica publicada no jornal A Gazeta. "O segundo espetáculo degenerou em função de circo."

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Mário de Andrade recitou versos de 'Inspiração'


"A segunda noite ilustra com perfeição o espírito irreverente e desafiador da Semana de Arte Moderna", aponta a jornalista e historiadora Márcia Camargos, autora de Semana de 22: Entre vaias e aplausos (Editora Boitempo).

"Se a Semana de 22 não tivesse existido, algum outro evento, em algum outro lugar, teria surgido para mostrar o descontentamento dos jovens artistas com a estética da época."

O dia seguinte

A terceira e última noite da Semana de 22 aconteceu no dia 17. Dos três dias, foi o menos concorrido. Mesmo assim, quem compareceu ao Municipal naquela noite de sexta-feira se indignou com a apresentação de Villa-Lobos.

A ideia de convidá-lo partiu, mais uma vez, de Di Cavalcanti. "Ele nos tinha revelado um músico estranho que tocava piano num bar e compunha coisas espantosas", relatou Oswald de Andrade, em 1954.

Quando subiram as cortinas, o maestro vestia uma casaca e trazia um pé calçado com sapato e outro com chinelo. Com dificuldade para caminhar, apoiava-se em um guarda-chuva.

Pensando se tratar de mais um deboche modernista, o público vaiou. Há quem diga que, irreverências à parte, Villa-Lobos estava realmente com um calo no pé.

Chegava ao fim a Semana de 22.

Em crônica publicada no jornal Correio Paulistano, de 18 de fevereiro de 1922, Menotti Del Picchia se perguntava: "Que ficou da Semana de Arte Moderna?".

A Semana de 22 deu origem a um sem-número de revistas, como a Klaxon (1922), que durou de maio de 1922 a janeiro de 1923, e movimentos, como o Antropofágico (1928), de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral.

A Antropofagia, por sua vez, inspirou de filmes do Cinema Novo a canções do Tropicalismo, passando por peças de José Celso Martinez Corrêa, entre outros tantos.

O título da revista Klaxon, uma sugestão de Oswald de Andrade, virou motivo de piada para Lima Barreto (1881-1922).

"Pensei que se tratasse de uma revista de propaganda de alguma marca de automóveis americanos", tirou sarro o autor de Triste fim de Policarpo Quaresma (1911) no artigo "O futurismo", publicado na revista Careta de 22 de julho de 1922.

"A Semana de Arte Moderna não nasceu fazendo sucesso. Em 1922, a repercussão foi quase nula. Só passou a ter a importância que tem hoje em 1972, quando o governo de São Paulo financiou uma série de retrospectivas", esclarece a historiadora de arte Regina Teixeira de Barros.

"Seu legado é a reflexão crítica do passado e a vontade de renovação artística. A liberdade de criação é uma conquista da modernidade."

"Um grito no salão"

Uma das críticas mais recorrentes feitas à Semana é o fato de ela ter ignorado modernidades fora do circuito paulistano.

O professor Luís Augusto Fischer, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, cita dois exemplos, ambos do Rio: o escritor Machado de Assis (1839-1908) — "Já era moderníssimo, desde 1880, tanto em forma quanto em conteúdo" — e o compositor Noel Rosa (1910-1937) — "O exemplo do samba é o mais eloquente que existe!".

"A Semana de Arte Moderna é um evento superestimado. Se atribui a ele o papel de Big Bang de tudo de bom e moderno que aconteceu na cultura brasileira. Isso é uma bobagem! Um provincianismo sem tamanho!", critica.

"Tem muita coisa boa que aconteceu antes e depois da Semana de 22 que é moderna e não tem nada a ver com o modernismo paulista".

Na contramão dos que criticam a Semana de Arte Moderna e relativizam sua importância histórica e cultural, há quem não economize elogios.

"Não faz sentido querer desqualificar a Semana de Arte Moderna. Sua produção é inegavelmente importante. Caso contrário, não estaríamos aqui, cem anos depois, conversando sobre o legado da Semana de 22", argumenta a pesquisadora Gênese Andrade.

Se Lima Barreto era um feroz opositor do modernismo, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) não escondia sua admiração. Tanto que seu livro de estreia, Alguma poesia (1930), foi dedicado a Mário de Andrade.

Em crônica de 1972, por ocasião dos 50 anos da efeméride, o poeta mineiro comparou a Semana de Arte Moderna a "um grito no salão". "E, para dar grito, não se pede licença: grita-se!".

Cem anos depois, o grito dos modernistas continua ecoando, em alto e bom som.


Mulheres modernistas

 Felipe Machado

Revista ISTOÉ

O evento que aconteceu há um século teve poucas representantes, mas a força da influência feminina na época continua presente na arte brasileira até os dias de hoje

 (Crédito: Divulgação)

MUSA Manteau Rouge, autorretrato de Tarsila do Amaral:

 paixão pela arte do Brasil após temporada em Paris 

Há um século, em 13 de fevere, o dramaturgo Graça Aranha subia ao palco do Theatro Municipal, em São Paulo, para apresentar a conferência A Emoção Estética da Arte Moderna. “Para muitos de vós, o curioso e sugestivo evento que gloriosamente inauguramos hoje é uma aglomeração de horrores”, proclamou, na palestra que abriu a Semana de 1922. Apesar de ser um marco na cultura brasileira, não foi a primeira mostra do genêro no País. Exposição de Pintura Moderna, de Anita Malfatti, já havia surpreendido o País em 1917. 

Divulgação

A Semana de 1922 contou com apenas quatro mulheres: as pintoras Anita Malfatti e Zina Aita, a artista têxtil Regina Graz e a pianista Guiomar Novaes. O baixo número, porém, não impediu a grande influência que elas tiveram sobre o modernismo brasileiro – sem contar as que ingressaram mais tarde no movimento. A pintora Tarsila do Amaral, que estava em Paris na época do evento e voltou quatro meses depois, logo se tornou um de seus principais nomes; a escritora e ativista Pagu só ingressaria na turma em 1928, mas seu ativismo é referência para o movimento feminista até hoje.

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PIONEIRA Autorretrato, de Anita Malfatti: Semana de 1922 foi reação

 de jovens artistas contra as críticas de Monteiro Lobato à pintora 

É possível dizer que a própria Semana de 1922 não existiria sem a exposição de Anita Malfatti em 1917 – os tais “horrores”, que Graça Aranha ironizaria cinco anos mais tarde. Foi a primeira vez que os brasileiros viam obras cubistas e pós-impressionistas influenciadas pela vanguarda europeia. Os conservadores ficaram chocados: o escritor Monteiro Lobato detonou a pintora no texto Paranóia ou mistificação?, publicado na imprensa. A crítica teve forte impacto: das 53 obras expostas, foram vendidas apenas oito – e seis delas acabaram sendo devolvidas logo depois. Os dois quadros negociados haviam sido comprados por artistas que se tornariam os melhores amigos da artista: Mário de Andrade e Oswald de Andrade. “Anita só aguentou a pressão porque era uma mulher de muita personalidade”, afirma Luiz Francisco Pini, seu sobrinho-neto. “Estava acostumada a superar problemas desde a infância. Aprendeu até a pintar com a mão esquerda porque tinha um problema na mão direita. Era uma mulher muito determinada.”

 (Crédito:Divulgação)

Pagu teve mais importância como ativista. 

Publicouseu primeiro livro somente em 1933 

Descendente de alemães, Anita estudou pintura em Berlim e Dresden por incentivo do tio, Jorge Krug, arquiteto que trabalhava no famoso escritório de Ramos de Azevedo, responsável por marcantes obras em São Paulo. Na viagem, teve contato com o Expressionismo Alemão, estética que influenciaria seu estilo. Em 1915, deixou o país rumo a Nova York, nos EUA, para fugir da Primeira Guerra. Voltaria ao Brasil dois anos depois, para a exposição de 1917.

“O poeta Menotti del Picchia a considerava pioneira da ‘revolução’ de São Paulo”, afirma Paulo Villella, do Instituto Anita Malfatti. “Ela foi a primeira a misturar as técnicas europeias com os temas brasileiros, por meio do uso de cores fortes e elementos tropicais, como frutas.”

Em 2018 Anita passou a frequentar o ateliê de Pedro Alexandrino, onde conheceu e ficou amiga de uma de suas alunas mais brilhantes: Tarsila do Amaral. A jovem artista deslumbrou-se com o estilo original de Anita, que ia muito além das naturezas mortas que Alexandrino ensinava em seu estúdio. Influenciada pela amiga – que mais tarde se tornaria rival –, foi a vez de Tarsila ir estudar em Paris. Voltou ao País apenas em junho de 1922, quando se apaixonou pelo movimento modernista e por um de seus líderes, Oswald de Andrade. Os dois se casaram em 1926, formando o “Tarsiwald”, um dos primeiros casal de celebridades no país. 

Mário de Andrade por ele Mesmo - 

aulo Duarte Ensaios sobre a cultura e correspondências 

 

Parque Industrial - Pagu Um “romance proletário”:

 reflexão revolucionária publicada em 1933

 

Modernismos 1922-2022 - Vários autores 29 ensaios sobre

 a Semana e seus desdobramentos nos dias de hoje 

 

 Lira Mensageira - Sergio Miceli

 Carlos Drummond de Andrade e o grupo modernista mineiro 

 

Serafim Ponte - Grande Oswald de Andrade 

Um dos marcos do movimento, foi considerado “escandaloso” 

Oswald também se envolveu com outra mulher essencial para o modernismo: Pagu. Patrícia Galvão tinha 18 anos quando se aproximou dos modernistas e conquistou a turma com os ideais inspirados pela Revolução Russa. “Tarsila adotou Pagu”, afirma Tarsilinha do Amaral, sobrinha-neta da pintora. “Ela era linda e muito simples, não tinha nem roupas para frequentar as festas. Tarsila emprestava tudo.” A importância de Pagu, no entanto, foi mais política que artística. “Era uma mulher muito livre, uma intelectual. Só foi se tornar escritora mais tarde.” Essa liberdade trouxe consequências: teve um caso com Oswald e engravidou. Para evitar o escândalo, ele a obrigou a se casar com Belizário, assistente de Tarsila, sem que a esposa soubesse de nada. Na lua de mel, porém, Oswald viajou para a Bahia, dispensou o funcionário e passou um mês com Pagu. Na volta a São Paulo, Tarsila pediu a separação. Pagu e Oswald casaram-se em 1930.

Hoje os quadros de Anita e de Tarsila valem milhões de dólares, mas a primeira modernista brasileira a ser reconhecida no exterior foi a pianista Guiomar Novaes. Admiradora de Frédéric Chopin, ficou fascinada com a música de Heitor Villa-Lobos na Semana de 1922 e tornou-se sua principal intérprete em concertos internacionais. Hoje, cem anos depois, os “horrores” das modernistas brasileiras conquistaram o mundo.  

(Crédito:Divulgação)

INTERNACIONAL Guiomar Novaes: 

a maior intérprete da obra de Villa-Lobos 

Pioneiras como Tarsila do Amaral e Anita Malfatti abriram o caminho para as gerações de artistas femininas que vieram depois, das escultoras Lygia Clark (1920-1988) e Lygia Pape (1927-2004) a nomes contemporâneos, como Adriana Varejão (foto) e Beatriz Milhazes. Ambas fazem sucesso no mercado internacional: a tela “Parede com incisões à La Fontana II”, de Adriana Varejão, é a obra de um brasileiro vivo mais cara da história: foi leiloada na Christie’s, em Londres, por R$ 2,72 milhões. Beatriz Milhazes também já expôs em mostras internacionais nos EUA e Europa, e seus trabalhos integram os acervos dos museus MoMA, Guggenheim e Metropolitan, em Nova York.

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Artistas atuais foram influenciadas pelas modernistas

“Legado da Semana de 22 precisa de constante renovação”, diz brasilianista

  Diego Braga Norte 

Veja online

Para Kenneth David Jackson, da Universidade de Yale, a cultura brasileira perde espaços e inserção internacional por falta de um projeto cultural de Estado

  Reprodução/Reprodução

Comissão organizadora da Semana de Arte Moderna de 1922,

 tendo o escritor Oswald de Andrade à frente - 

O americano Kenneth David Jackson estava no Brasil em 1972, durante o cinquentenário da Semana de Arte Moderna de 1922. Na época, ele era um jovem estudante na Universidade de São Paulo, onde pesquisava literatura brasileira sob orientação do professor Antonio Candido. Cinquenta anos e mais de uma dezena de livros depois — incluindo obras sobre Machado de Assis e Oswald de Andrade — ele hoje é o atual diretor de estudos em língua portuguesa da Universidade de Yale – e um dos mais respeitados brasilianistas na academia americana.

Falando de seu escritório em New Haven, no estado de Connecticut, Jackson sente não poder estar em São Paulo para acompanhar os eventos em comemoração ao centenário da Semana – que é comemorado a partir desta sexta-feira, 11. Embora entusiasta do modernismo brasileiro, ele mantém uma postura crítica em relação aos desdobramentos do movimento, apontando que as aspirações internacionais dos modernistas se esvaíram no tempo por falta de uma política cultural séria e contínua. Jackson afirma que “obras fundamentais da literatura brasileira carecem de traduções decentes”. E arremata: “Governos sérios, através de suas embaixadas, patrocinam boas traduções de grandes obras nacionais.” Leia a seguir trechos da conversa do brasilianista com VEJA:

 Tempos atrás, o senhor proferiu uma frase muito interessante para definir o modernismo brasileiro: “um nada que é tudo”. Poderia explicar melhor essa ideia? 

É uma frase de Fernando Pessoa a respeito de Ulisses, que tem a ver com o processo pelo qual os mitos entram na realidade. No caso da Semana de Arte Moderna, hoje ela entrou na nossa realidade como mito, sendo agora uma entidade talvez muito diferente dos programas originais de 1922. Naquela época foi importante, mas hoje é um mito. 

Falando da mitificação e até da mistificação da Semana, quase toda produção cultural brasileira é medida a partir do modernismo, até muita coisa que veio antes acaba sendo enquadrada no chamado (e muito criticado) pré-modernismo. Nesse sentido, o senhor acredita que a cultura e as artes brasileiras estão “presas” ao modernismo? 

Para mim trata-se de uma fase, um período nas artes, não de um “ismo.” O maneirismo está “preso” ao barroco, ou o rococó ao classicismo? Também não há limites, portas ou muros para separar um “pré” ou “pós-modernismo”. Prefiro ver na modernidade brasileira, em todos os seus talentos e toda a sua variedade, um florescimento de expressão nas artes e na sociedade que continua até hoje.

 O senhor disse que o “Abaporu é o quadro mais importante da América Latina”. Qual a importância simbólica da obra?  

O Abaporu está ligado à Antropofagia, hoje conceito internacionalmente debatido, e é uma obra-chave da modernidade primitivista. Estourou em exposições internacionais desde a década de 1990 e sobretudo depois das exposições do Chicago Art Institute e do MoMA, em 2018 e 2019. 

Os modernistas da Semana eram muito ligados à produção vanguardista europeia, tinham conexões internacionais, viajavam com frequência. Como o senhor vê esse internacionalismo dos modernistas?

 Os modernistas da Semana importaram as vanguardas europeias para tentar construir e exportar uma imagem diferente do Brasil. Houve uma presença importante de diplomatas na articulação do movimento. Já nasceu com olhos no exterior, como fruto de intercâmbios e promovendo encontros. Pena que não houve e não há continuidade nesse projeto, que era algo realmente moderno, internacionalista, globalizado. Graça Aranha havia pouco tempo se aposentara como diplomata quando discursou na abertura da Semana. Ronald de Carvalho [outro participante] tinha sido diplomata em Paris em 1913, e em Portugal, em 1914. O diplomata Souza Dantas era anfitrião dos artistas brasileiros e organizava jantares com grandes personalidades das artes em Paris, em 1923, patrocinando o discurso de Oswald de Andrade na Sorbonne. 

E quais os motivos que levaram à interrupção desse processo de internacionalização das artes e da cultura brasileira? 

Há um conjunto de fatores, mas o principal é a ausência de um projeto cultural de Estado para valorizar e exportar cultura, arte e brasilidade. Portugal tem o Instituto Camões, a Espanha, o Cervantes; a França, a Aliança Francesa; o Reino Unido, o British Council; a Alemanha, o Göethe; os Estados Unidos têm Hollywood. O Brasil nunca teve e não tem ainda representação e promoção cultural em países-chave. Essa carência afeta a visibilidade da produção cultural brasileira e a consciência da própria língua e cultura. Por exemplo, nos Estados Unidos, o Brasil é incorporado no conjunto “América Latina” e perde sua especificidade. Onde está o Brasil no mundo? 

A falta de um projeto cultural afeta a projeção internacional do Brasil? 

Sim, afeta muito. Obras fundamentais da literatura brasileira carecem de traduções decentes. Macunaíma foi destruído, a tradução é muito ruim. Grande Sertão: Veredas foi mutilado a ponto de ser vendido como um spaguetti western, toda a inovação linguística do Guimarães Rosa foi ignorada na tradução. Machado de Assis só ganhou um ótima tradução do Memórias póstumas de Brás Cubas agora, em 2020. Governos sérios, através de suas embaixadas, patrocinam boas traduções de grandes obras nacionais. 

O modernismo (e os modernistas) de 1922 acreditava que tudo que fosse novo seria automaticamente melhor do que algo anterior, velho, passadista. Poderia explicar essa característica? 

Era uma visão muito influenciada pelo positivismo; não só o progresso, mas a progressão é um ideal modernista. Há traços do nacionalismo positivista muito fortes na cultura e história recentes brasileira. Até a bandeira nacional tem um lema positivista. Os fundamentos dessa visão estavam presentes no modernismo e continuam ainda válidos em diferentes elementos da cultura e da sociedade brasileira. 

Stefan Zweig escreveu que “o Brasil é o país do futuro” e essa frase virou um epíteto nacional. O Brasil estaria condenado a ser uma utopia e não uma realidade? 

A frase de Stefan Zweig precisa ser entendida no contexto de uma Europa devastada por guerras e o Holocausto. Mesmo antes, em Spengler [o historiador alemão Oswald Splenger, 1880-1936] há a ideia do “declínio do Ocidente” e o ideal do homem das Américas. O Brasil recebeu um número imenso de imigrantes e refugiados. Como no romance de Milton Hatoum [Órfãos do Eldorado], os Eldorados não são sustentáveis, porém os mitos são necessários. 

Recentemente, sobretudo pelas obras do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, a antropofagia voltou com força em trabalhos e pesquisas acadêmicas. Como o senhor vê hoje a antropofagia oswaldiana? 

Os ensaios mais interessantes têm a ver com relações internacionais e teorias de encontros de povos e culturas. E há grande número de obras de arte e arquitetura que tratam do tema. É uma ideia que não envelheceu, mas rejuvenesceu. A antropofagia está mais atual hoje. 

O senhor esteve no Brasil durante as festividades do cinquentenário da Semana, em 1972. Quais as semelhanças e diferenças entre o cinquentenário e o atual centenário? 

Há uma internacionalização muito maior da cultura e das artes hoje, uma divulgação pela cultura jovem, música, cinema, universidades, uma publicação muito mais intensa e especializada das obras e, enfim, acesso às partituras do Villa-Lobos (mas ainda não de outros compositores importantes, como Camargo Guarnieri). Estão saindo grandes coleções de obras de Oswald de Andrade, da Pagu e de outros modernistas. Há agora no centenário uma presença e consciência muito maior do legado da Semana. 

Cem anos depois da Semana, nós temos o que comemorar?

 Quais os legados mais importantes da Semana e do modernismo? Como queriam os organizadores da Semana, o Brasil é representado internacionalmente por artistas com altíssimo grau de profissionalização, bem acolhidos nos museus e salas de concerto mundiais, com obras expressivas de uma realidade brasileira. Como queria Mário de Andrade, a inteligência artística do país tem sido atualizada, em grande parte apoiada pelo significado da Semana. É um legado que precisa de constante atenção e renovação.



Como os artistas da Semana de 22 foram de demolidores a cancelados

 Diego Braga Norte 

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De Tarsila a Mário de Andrade, os mesmos modernistas que atacavam com fúria o passado agora são alvos da iconoclastia das redes sociais

 Divulgação/Divulgação

 O escritor e poeta modernista Mário de Andrade, autor de 'Macunaíma'

O modernismo celebrado e propagado pela Semana de Arte Moderna de 1922 tinha uma forte característica iconoclasta. Os artistas e intelectuais futuristas (só posteriormente eles seriam rotulados de modernistas) queriam se livrar do “passadismo”. E dentro nessa definição imprecisa e elástica cabiam muitos alvos: parnasianismo, academicismo, simbolismo e praticamente quaisquer outros “ismos” vindos do passado. Em busca da renovação nas artes, os modernistas torciam o nariz para o perfeccionismo anatômico das estátuas clássicas gregas, mas louvavam as linhas “duras” e geométricas das obras de Victor Brecheret. Eles se enfastiavam com a simetria e organização dos quadros renascentistas, mas batiam palmas para liberdade de escalas e proporções do cubismo.

É um exercício fascinante imaginar como essa iconoclastia se apresentaria nos dias de hoje, 100 anos após a Semana de 22 – efeméride que se comemorará nesta sexta-feira, 11 de fevereiro. Mais que isso, é inevitável constatar: nem mesmo aqueles vanguardistas empenhados em demolir as convenções escapam da fúria da cultura do cancelamento – a temível forma contemporânea de ação iconoclástica que viceja nas redes sociais.

Uma história protagonizada por um dos líderes da Semana de 22, o escritor Mário de Andrade, ilustra bem essa ironia histórica. Em 1920, Andrade estava ansioso para chegar em casa, no Largo do Paissandu, no centro de São Paulo, e mostrar para sua família uma imagem de Cristo que ele havia adquirido. Andando a pé para economizar com bonde e valendo-se de empréstimos, ele comprara uma cópia em bronze da obra Cabeça de Cristo, do então jovem escultor Victor Brecheret. “Sensualissimamente feliz”, ele desembrulhou o pacote na sala, na frente de seus pais e de uma tia mais velha, a matriarca da família. A imagem da face de Jesus em formato piramidal, com traços fortes, angulosos e de lábios volumosos causou espanto aos católicos Andrade. Seus pais e sua tia, devotos fervorosos, ficaram particularmente escandalizados com as trancinhas no cabelo de Cristo, classificando a imagem como “medonha” e “herética”.

Andrade ficou muito aborrecido e posteriormente, numa carta, contou o que se passou naquela noite: “Fiquei alucinado, palavra de honra. Minha vontade era bater. Jantei por dentro, num estado inimaginável de estraçalho. Depois subi para o meu quarto, era noitinha, na intenção de me arranjar, sair, espairecer um bocado, botar uma bomba no centro do mundo. Me lembro que cheguei à sacada, olhando sem ver o meu largo. Ruídos, luzes, falas abertas subindo dos choferes de aluguel. Eu estava aparentemente calmo, como que indestinado. Não sei o que me deu. Fui até a escrivaninha, abri um caderno, escrevi o título em que jamais pensara, Pauliceia Desvairada.” Pouco mais de uma semana depois, estava praticamente pronto seu primeiro livro de poesias modernistas, sem métricas fixas, sem rimas e com seus 22 poemas tratando de temas exclusivamente urbanos. O livro seria publicado em 1922, alguns meses depois da Semana de Arte Moderna, que, entre outras obras, exibiu esculturas do Brecheret no saguão do Teatro Municipal de São Paulo.

Curioso notar o percurso histórico de inúmeras obras modernistas nesses 100 anos que se passaram desde a Semana de 22. Elas foram incompreendidas e criticadas no lançamento. Mais tarde, assimiladas, aplaudidas e comercializadas por valores expressivos. Agora, finalmente, caem na vala comum das produções culturais canceladas. Como Mário de Andrade e seus colegas reagiriam às críticas ao Monumento às Bandeiras, de Brecheret, por ele retratar homens brancos subjugando escravos negros? O que diriam sobre o cancelamento do quadro A Negra, de Tarsila do Amaral?

Nem o próprio Andrade, estrela maior da constelação modernista, está a salvo. Sua obra-prima Macunaíma é acusada de fazer “apropriação cultural” e deturpar lendas e saberes dos povos nativos. O escritor e músico indígena Cristino Wapichana escreveu recentemente na revista Quatro Cinco Um: “A forma como [Mário de Andrade] descreveu Macunaíma reforçou o sentimento anti indígena dos brasileiros, que ainda persiste 93 anos depois da publicação do célebre livro. A mistura dos diversos personagens indígenas, como muiraquitã, ceuci e Tainakã, fortalece a ignorância e a falta de humanidade dos não indígenas.”

Há algo de moderno ou modernista no atual cancelamento? Para os especialistas, esse movimento tem aspectos positivos, mas traz também riscos. De um lado há a necessidade de reparação histórica e de construção de uma sociedade mais igualitária. Do outro, há os perigos do apagamento da história e do revisionismo. “Não adianta derrubar, apagar a memória nacional. Somos o resultado da somatória de coisas boas e negativas. O Monumento às Bandeiras  é um dos únicos grandes monumentos do país. Vale a pena destruí-lo para sempre ou encará-lo e estudá-lo de forma crítica?”, questiona a historiadora, curadora e crítica de arte Aracy Amaral.

“É justo que grupos reivindiquem atualizações na história e novas interpretações. Grupos identitários não pertencem a uma classe, a um país, mas a uma linhagem cultural. Faz sentido, mas a expressão pública disso é problemática, pois não há superioridade moral. Esse debate é legítimo e necessário, mas não tem cabimento apagar. Se for assim, a gente apaga tudo, toda a herança colonial brasileira. Não quero relativizar nem diminuir a dor dos que foram oprimidos, mulheres, LGBTQIA+, indígenas, negros. Na minha república ideal, o espaço público e a história têm de ser debatidos, não cancelados”, avalia Luís Augusto Fischer, ensaísta e professor de literatura brasileira da UFRGS.

O tempo passa – e a iconoclastia assume novas e inesperadas formas. Diante disso, a pergunta que não quer calar: se a Semana de 22 ocorresse agora, os jovens equivalentes de Mário de Andrade e dos demais modernistas estariam do lado dos canceladores ou cancelados? Resumindo as diferentes percepções dos especialistas ouvidos por VEJA, conclui-se que a contestação do passado é uma atitude bem modernista, mas o aniquilamento, não. Salvo por críticas feitas em manifestos e ensaios, os modernistas jamais chegaram a destruir obras consideradas passadistas. “Uma coisa é o embate teórico e estético e outra, bem diferente, é a destruição física”, explica Regina Teixeira, historiadora da arte e curadora. “É sempre importante rever e discutir, mas nunca é bom apagar o passado. Proponho aos artistas e questionadores fazerem uma obra anti-Borba Gato. Apagar a história é prejudicial para todos, até para quem critica as estátuas”, diz, referindo-se à estátua do bandeirante incendiada em São Paulo.


Semana de Arte Moderna: onde ver, ler e ouvir obras de 1922

 Julia Braun

Da BBC News Brasil em São Paulo 

CRÉDITO,IEB/USP/REPRODUÇÃO FOTOGRÁFICA ROMULO FIALDINI

Capa do programa da Semana de Arte Moderna de 22, de autoria de Di Cavalcanti

A Semana de Arte Moderna, evento organizado por um grupo de intelectuais e artistas por ocasião do Centenário da Independência em 1922, foi um verdadeiro marco na história de São Paulo, considerada um divisor de águas na cultura brasileira.

O evento que comemora 100 anos na próxima semana foi realizado entre os dias 13 e 17 de fevereiro, no Teatro Municipal de São Paulo, e financiado pela oligarquia paulista.

O festival incluiu exposição com cerca de 100 obras, aberta diariamente no saguão do teatro, e três sessões noturnas de apresentações de literatura e música.

Influenciados pelo fim da Primeira Guerra Mundial e pelas vanguardas europeias, os organizadores propunham o rompimento com a arte acadêmica e o compromisso com a independência cultural. Também lutavam pela valorização de uma arte "mais brasileira".

Apesar de ter provocado irritação e algazarra no público presente por suas visões, a Semana conseguiu revelar novos grupos, artistas e publicações, tornando a arte moderna uma realidade cultural no Brasil.

A BBC News Brasil destaca a seguir alguns dos principais trabalhos apresentados durante o festival, assim como dicas sobre onde encontrar e visitar as obras atualmente.

Anita Malfatti

A pintora paulista Anita Malfatti, que também era desenhista, gravadora, ilustradora e professora, é uma das mais relevantes artistas brasileiras, com papel determinante na introdução da estética modernista no país.

Sua relevância pode ser aferida pelo destaque concedido a ela na programação da Semana de Arte Moderna: Anita foi a artista com maior representação individual na exposição, com 12 telas a óleo e oito peças entre gravuras e desenhos.

 CRÉDITO,REPRODUÇÃO/INSTAGRAM

O quadro 'A Estudante' faz parte do acervo do MASP

Uma das obras da artista exibida durante a Semana de 1922 foi 'A estudante', de 1915. O quadro faz parte do acervo do MASP (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand), que tem entrada gratuita todas as terças-feiras e na primeira quarta-feira de todos os meses.

A pintura 'O Farol', de 1915, faz parte da Coleção Gilberto Chateaubriand no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro. O museu funciona de quinta a domingo e tem entrada gratuita.

O quadro 'O Homem de Sete Cores' também foi exibido. É possível admirá-lo ao vivo no Museu de Arte Brasileira - MAB FAAP, que funciona todos os dias exceto às terças-feiras.

 CRÉDITO,REPRODUÇÃO FOTOGRÁFICA MAB FAAP

'O Homem de Sete Cores' no acervo virtual do MAB FAAP

Já a pintura 'A Ventania', 1915, integra o acervo do Palácio dos Bandeirantes, a sede do governo de São Paulo. O local pode ser visitado de segunda a sexta-feira, das 10h às 16h, e a entrada é franca.

Di Cavalcanti

Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque e Melo, mais conhecido como Di Cavalcanti, destacou-se nas artes plásticas por retratar figuras populares da cultura brasileira, como as favelas, o samba e o carnaval.

Na Semana de Arte Moderna, além de apresentar onze telas no hall do Teatro Municipal, o pintor carioca foi responsável por ilustrar as capas do programa do evento e do catálogo da exposição de artes visuais. 

CRÉDITO,REPRODUÇÃO FOTOG. 

ARQUIVO PINACOTECA DO ESTADO

'Amigos', de Di Cavalcanti

Uma de suas obras exibidas foi 'Amigos (Boêmios)', 1921, que atualmente faz parte do acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. A entrada no museu é gratuita aos sábados e é obrigatório apresentar comprovante de vacinação contra covid-19.

John Graz

O pintor suíço-americano John Graz foi outro dos artistas convidados a expor na Semana de Arte Moderna. Entre as obras escolhidas para fazer parte da exposição estava a tela 'Retrato do Desembargador Gabriel Gonçalves Gomide', de 1917. O quadro faz parte do acervo do MASP, em São Paulo.

CRÉDITO,REPRODUÇÃO FOTOGRÁFICA MASP-JOÃO MUSA

Quadro pintado em 1917 pode ser visitado no MASP, em São Paulo

Graz também exibiu a obra 'Paisagem da Espanha', pintada em 1920. O quadro está em exibição na Pinacoteca do Estado de São Paulo. 

CRÉDITO,REPRODUÇÃO FOT. PINACOTECA DO ESTADO DE SP

'Paisagem da Espanha', de John Graz

Vicente do Rego Monteiro

O pintor e escultor pernambucano Vicente do Rego Monteiro também participou da mostra. Suas obras eram fortemente inspiradas pela cultura indígena e marcadas pela simplificação. 

CRÉDITO,COLEÇÃO GILBERTO CHATEAUBRIAND - MAM/RJ

'Retrato de Ronald de Carvalho', de 1921

Ao todo, o artista exibiu oito trabalhos no Teatro Municipal. Um deles, intitulado 'Retrato de Ronald de Carvalho', de 1921, pode ser visitado atualmente no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro.

Victor Brecheret

Italiano, Victor Brecheret foi um dos precursores do movimento modernista brasileiro nas artes. Sua obra é marcada por diferentes técnicas da escultura, do mármore à terracota, e de temas relevantes da cultura nacional.

O escultor foi convidado a exibir 12 obras na Semana de 1922, entre elas 'Cabeça de Mulher'. A estátua em terracota de cerca de 35 cm de altura faz parte do acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. 

CRÉDITO,REPRODUÇÃO FOTOGRÁFICA 

PINACOTECA DO ESTADO DE SP

'Cabeça de Mulher', de Victor Brecheret

A escultura 'Soror Dolorosa', de 1920, também foi exibida. Atualmente, a obra em bronze pode ser visitada na Casa Guilherme de Almeida, na cidade de São Paulo. O museu está aberto de terça a domingo, das 10h às 18h.

Mário de Andrade 

CRÉDITO,REPRODUÇÃO CASA MÁRIO DE ANDRADE

Foto oficial do grupo da Semana de Arte Moderna: 

Mário de Andrade, de terno escuro e óculos, está à esquerda

Um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna, Mário de Andrade foi um grande poeta, romancista e crítico de literatura e arte. O escritor leu alguns de seus poemas no palco do Theatro Municipal de São Paulo ao longo dos três dias de apresentações, mas foi criticado pela imprensa paulista e vaiado em diversas ocasiões pelo conteúdo vanguardista das obras.

Isso aconteceu durante o segundo dia de apresentações, quando Mário de Andrade recitou o poema Ode ao Burguês, que faz parte do seu livro Paulicéia Desvairada. A antologia de contos foi publicada em 1922 e é reconhecida por muitos como a primeira obra realmente de vanguarda do movimento modernista.

O poema escolhido para ser apresentado no Teatro Municipal desagradou pois atacava a burguesia e, dessa forma, muitos dos presentes na plateia.

Também no segundo dia do evento, Mário realizou uma conferência, que mais tarde viraria livro, publicado como ensaio intitulado A Escrava que Não é Isaura. Em sua fala, o escritor defendeu a modernidade no Brasil, sugerindo um olhar que mire as raízes da cultura popular brasileira.

Todas as obras de Mário de Andrade se tornaram domínio público em 2014, o que significa que os livros que contém o poema e a conferência apresentados no Teatro Municipal podem ser baixados gratuitamente pelo Google Livros e outras ferramentas online.

Graça Aranha 

CRÉDITO,DIVULGAÇÃO-TEATRO MUNICIPAL DE SP

Teatro Municipal de São Paulo em 1911: mais de dez anos

 após inauguração, local foi o palco da Semana de 1922

Mais conhecido por seu papel na diplomacia brasileira, Graça Aranha também teve um papel significativo no movimento modernista e na Semana de 22. Além de organizador e financiador, ele ficou encarregado de proferir o discurso inicial intitulado "A emoção estética na arte moderna".

Parte da palestra está disponível para leitura na página do autor no site da Academia Brasileira de Letras (ABL), que Aranha ajudou a fundar em 1897.

Graça Aranha iniciou seu discurso elogiando os jovens e ousados artistas modernos, mas dedicou-se em grande parte a academia, assim suas regras e moldes para a arte. "O que se pode afirmar para condená-la é que ela suscita o estilo acadêmico, constrange a livre inspiração, refreia o jovem e árdego talento que deixa de ser independente para se vasar no molde da Academia", diz um trecho da apresentação.

Manuel Bandeira

O poeta pernambucano Manuel Bandeira não participou da Semana de Arte Moderna de 1922, mas seu poema "Os Sapos" foi lido no segundo dia de evento. Os versos foram declamados por Ronald de Carvalho, em meio às vaias da plateia.

O poema de 1918 carrega métrica regular e preocupação com a sonoridade, em uma espécie de paródia da poesia parnasiana. O objetivo era criticar o apego do formato à métrica, o que causou indignação do público.

É possível ler o poema na coletânea 'Melhores poemas: Manuel Bandeira', publicada pela Global Editora em 2020. Ele também está disponível no site do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da Universidade de São Paulo (USP).

Heitor Villa-Lobos 

CRÉDITO,DIVULGAÇÃO - ACADEMIA BRASILEIRA DE MÚSICA

Villa-Lobos fundou a Academia Brasileira de Música em 1945

O compositor carioca Heitor Villa-Lobos foi a principal figura da música na Semana de 1922. Ele já era um dos mais importantes compositores brasileiros à época do evento e exibiu sua obra em dois dias de apresentações.

Mas foi o terceiro dia de apresentações no Teatro Municipal que entrou para a história. Antes mesmo de começar sua apresentação, o maestro causou uma das maiores polêmicas da Semana ao subir no palco com um pé calçado com um sapato e outro com chinelo. Sua atitude foi classificada por muitos como desrespeitosa e rendeu vaias e críticas da plateia, mas depois descobriu-se que o compositor sofria com um calo, o que o impediu de vestir o calçado.

Entre as obras do compositor apresentadas estiveram "Segunda Sonata", "Danças Africanas", "Valsa Mística", "Cascavel", "Terceiro Quarteto", entre outras.

Todas as peças podem ser escutadas em aplicativos de streaming como o Spotify e também no Youtube.

Há ainda a possibilidade de desfrutar das obras do compositor no espaço Ouvillas, localizado dentro do Parque Villa Lobos na cidade de São Paulo. Ali os visitantes podem descansar em bancos e espreguiçadeiras enquanto ouvem as músicas tocadas em pequenas caixas de som.

Guiomar Novaes 

CRÉDITO,REPRODUÇÃO INSTITUTO PIANO BRASILEIRO

Retrato da pianista Guiomar Novaes

As apresentações musicais da Semana de Arte também foram compostas por Guiomar Novaes. A paulista é considerada por muitos como a maior pianista brasileira.

Guiomar participou do primeiro dia de apresentações. O desejo dos modernistas era que ela tocasse as paródias que Erik Satie fez das obras de Chopin, mas ela se recusou. Por fim, ela apresentou sucessos de Debussy, Blanchet e Villa-Lobos. É possível ouvir gravações da pianista tocando essas obras no Spotify, Deezer, Apple Music e YouTube.


Entenda como Tarsila e os modernistas importaram o conceito de 'chic' da Europa

 Pedro Diniz

Folha de São Paulo 

Tarsila e sua obra maias famosa: "Abaporu!

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Oswald de Andrade provocou —"tupi or not tupi?". À luz do centenário da Semana de Arte Moderna, celebrado neste mês, a resposta à questão levantada em seu "Manifesto Antropófago" poderia ser "depende".

Não que a partir daqueles três dias de fevereiro em 1922, organizados numa São Paulo pujante como comemoração antecipada do centenário da Independência do Brasil, a literatura e as artes visuais brasileiras não tenham mudado para sempre. Porém, a gênese modernista de lançar um projeto de construção da identidade nacional foi até a página dois. Ou até a porta do guarda-roupa.

É certo que as mudanças de estilo acompanham as rupturas culturais. O art déco, por exemplo, lançou o funcional minimalista de Coco Chanel. O surrealismo foi motor da exuberância onírica difundida por Elsa Schiaparelli. E a ascensão da classe operária foi responsável pelo casual alinhavado em jeans de Levi Strauss.

O modernismo brasileiro, contudo, reafirmou o gosto das elites pelo estilo internacional e uma herança de moda colonial que até hoje repercute na idealização do Brasil sobre o "ser chique". É o que afirmam teóricos e curadores que se debruçaram sobre o tema nos últimos meses.

A começar pelo casal Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade. Se a lupa direcionada ao passado da miscigenação e o rompimento com a academia foram as sementes que inspiraram o modernismo, íntimo das escolas fauvistas e dadaístas e do futurismo italiano, a dupla não escolheu para a criação de seu figurino as mesas de corte do interior, ou mesmo as das capitais, mas sim as de Paris, especificamente a dos ateliês dos estilistas Jean Patou e Paul Poiret.

O último, emblema da belle époque, era o maior nome de estilo no início do século e fundou as bases do pensamento de mesclar o exótico, por assim dizer —inspirado no que chamou de "orientalismo"—, à costura clássica. No livro "O Guarda-Roupa Modernista", que a pesquisadora Carolina Casarin lança nesta semana pela Companhia das Letras, se descortinam as viagens dos dois a Paris e o modo como a relação com Poiret foi decisiva para a imagem que queriam transmitir, meio excêntrica, meio conservadora, uma modernidade fora de moda.

Tarsila do Amaral escolhe a mistura de xadrez e pele, cores elétricas e sobriedade que sucedeu os "loucos anos 1920", o cabelo cortado na última moda europeia e a silhueta solta. Oswald de Andrade, por sua vez, adota a moda esportiva e, em alguma medida, cores chamativas, influenciado pelo estilo perpetuado pelos futuristas, principalmente aquele do pintor Giacomo Balla.

 Grafitti Artes

A arte modernista de Tarsila do Amaral - Grafitti Artes

"Existe uma vontade de criar um estilo heterogêneo, que se identifica com o modernismo pela teoria. Mas não havia moda brasileira nessas escolhas", afirma Casarin.

Em abril do ano passado, a mostra "A Arte da Moda - Histórias Criativas" desnudou no Farol Santander, em São Paulo, esse distanciamento do ideal dos modernos com a nascente produção nacional de moda. Em espaço dedicado a Tarsila em que se via partes de seu vestido de casamento, assinado por Poiret, a curadora Giselle Padoin explicitava o exotismo da identidade do estilista ao mostrar como ela fora construída a partir de elementos do balé russo e dos países asiáticos.

"Durante esse período [a primeira metade do século 20], a moda brasileira vestida pela elite era praticamente toda francesa. Até hoje, se olharmos com atenção, é a Semana de Moda de Paris que chama a atenção dessas pessoas", disse Padoin.

Para além do casal ícone da Semana, Mário de Andrade talvez tenha sido, segundo pesquisadores e estilistas, o que chegou mais perto de adotar um estilo genuinamente brasileiro tal qual ansiado pelo modernismo.

Nas viagens patrocinadas por Olívia Penteado a recônditos brasileiros, ele adotou de camisolões de linho a chapéus de palha, passando por calças encurtadas, que remetiam a um certo estilo interiorano criado pelos sertanejos. Mas logo voltou, como disse em uma de suas cartas a Manuel Bandeira, "às roupas bestas e à minha vida besta".

Do ponto de vista histórico, tanto os modernistas quanto a própria elite cafeeira paulistana da época foram vítimas das influências que irradiavam da França. João Braga, professor da Faculdade Santa Marcelina e coautor do livro "História da Moda no Brasil - Das Influências às Autorreferências", publicado pela Pyxis, defende que o modernismo "aplicou a semente de uma postura de diferenciação no comportamento, mas reproduziu a máxima de que o que é bacana vem de fora, porque, sejamos sinceros, na moda, adoramos uma coisinha importada", diz.

Braga conta que essa subserviência do vestuário brasileiro data dos tempos coloniais. Logo que chegou, contrariada, ao Brasil, a rainha dona Maria 1ª, mãe de dom João 6º, baixou uma lei proibindo editar livros e tecer tecidos sofisticados por aqui. Só fibras para a confecção da roupa dos escravos eram permitidas.

"Fica estabelecido, assim, que o que era de melhor qualidade viria da sede, ou seja, da corte portuguesa, que, assim como toda a Europa, usava a moda francesa", afirma ele.

Como resposta à imposição, o interior do país passou a produzir, ilegalmente, seus próprios tecidos de algodão. Foi assim que Minas Gerais se firmou como polo têxtil —o lugar não era rastreado pela corte, que só fiscalizava o litoral brasileiro.

A segunda grande virada que reforça essa linha do tempo sobre o ideal de nobreza do país é a abertura comercial dos anos 1990, promovida pelo então presidente Fernando Collor de Mello. A concorrência internacional destruiu boa parte das confecções e deixou à sombra a produção dos estilistas locais. "Mais uma vez, o Brasil teve de olhar para o próprio umbigo para se posicionar", diz Braga.

Foi só muito depois que uma unidade de moda nacional nasceu, em São Paulo. Antes, houve Zuzu Angel, primeira –e solitária– modernista tardia da moda brasileira, que nos anos 1970 ilustrou em criações o legado têxtil e iconográfico do país. E, uma década depois, em 1987, a publicação de "Modos de Homem e Modas de Mulher", em que Gilberto Freyre destila suas impressões sobre como os brasileiros adaptaram as influências europeias para construir seus guarda-roupas.

Dali, demorou quase outra década para que um grupo de estilistas, que incluiu Alexandre Herchcovitch, Walter Rodrigues e Ronaldo Fraga, começasse a pensar o estilo a partir de um olhar direcionado aos hábitos do país. Mesmo que, em alguma medida, eles ainda bebessem das mesmas referências da costura clássica europeia.

"Ainda assim, somos inseguros em assumir nossa própria identidade. O colorido ainda é visto como algo brega, veja só. Acredito que, de alguma forma, conseguimos mostrar ao mundo o que o Brasil pode ser", lembra Walter Rodrigues.

Hoje diretor criativo do evento gaúcho Inspiramais, voltado para a indústria de acessórios de couro e que tem como um de seus propósitos traduzir e aplicar as tendências globais na produção da indústria nacional, ele afirma que só agora é possível ver com clareza as raízes brasileiras nas passarelas.

"Principalmente vindo de designers negros, como os do projeto Sankofa", diz Rodrigues, lembrando o projeto que retoma na São Paulo Fashion Week as origens pré-coloniais e as matrizes africanas na roupa. "Há uma tentativa de romper de vez com o eurocentrismo de nossa moda, ainda que, é verdade, seja difícil ver a elite adotando o discurso na prática", diz.

Fraga vai além e afirma que "retrocedemos ainda mais". "Há uma crise estética sem precedentes em curso no Brasil, que nega seus símbolos. Um empobrecimento estético em várias esferas que, na moda, coloca a Zara como primeira opção."

Segundo o estilista, eventos como o da Rhodia, nos anos 1960, até tentaram aproximar a produção de moda da artística, quando estilistas reproduziram em roupas as telas de artistas brasileiros e as apresentaram em eventos em que música nacional era tocada ao vivo. Mas, de acordo com ele, como nossa educação não compreende que vestir, o que comer e como morar, nos afastamos do que seria próprio do país.

Ele, que se intitula um "turista aprendiz", referência ao livro de seu ídolo e guru estético Mário de Andrade –neste momento, aliás, o designer está em expedição pela Paraíba para pescar referências de suas coleções— afirma que só a gastronomia da zona rural ganhou espaço no luxo dos trópicos.

"Mas, no geral, o topo da pirâmide, que é quem tem poder para consumir uma nova ideia de estilo, não está nem aí. Há casos isolados, é claro, mas a sensação é de que quando a gente pensa que não vem uma elite mais burra, logo aparece outra."


Abaporu: a história do quadro mais valioso da arte brasileira

 Edison Veiga

De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil

CRÉDITO,MALBA

Em 11 de janeiro de 1928, a pintora Tarsila do Amaral (1886-1973) acordou ansiosa. Era aniversário de seu marido, o escritor Oswald de Andrade (1890-1954), e ela tinha preparado uma surpresa: um quadro de 85 centímetros por 73 centímetros, pintado em segredo nos últimos meses.

Com seu jeito afobado e verborrágico, Oswald nem deixou que artista explicasse a obra. Foi logo elogiando, dizendo que era a coisa mais incrível que ela já tinha feito. "É excepcional este quadro", dizia ele. "É o homem plantado na terra."

No mesmo dia, Oswald mostrou o presente para um de seus amigos, o poeta Raul Bopp (1898-1984). E juntos começaram a enxergar ali, naquela figura enigmática, um índio canibal, um homem antropófago, aquele que iria devorar a cultura para se apossar dela e reinventá-la.

Tarsila empolgou-se com a interpretação e correu para um velho dicionário de tupi-guarani. Ali encontrou as palavras "aba" e "poru" - "homem que come". Estava batizado aquele que se tornaria o mais valioso quadro da arte brasileira, Abaporu.

Mas o que seria apenas um presente de aniversário de uma artista para seu marido acabou transcendendo qualquer relacionamento para se tornar um dos quadros mais famosos do Brasil - e, certamente, o mais valioso.

 | Foto: Domínio público 

Tarsila do Amaral pintou o quadro mais valioso da arte brasileira em 1928

"Sua grandeza se deu desde o início, porque naquele contexto ele acabou inspirando o Manifesto Antropófago, escrito por Oswald, e o movimento que seria decorrente desse texto, a Antropofagia", afirma Tarsilinha do Amaral, sobrinha-neta e responsável pelos direitos da obra da artista, em entrevista à BBC News Brasil.

"Em seguida, o quadro acabou virando símbolo de tudo o que o modernismo queria dizer. A antropofagia, no sentido de absorver a cultura europeia, dominante na época, e transformá-la em algo nacional, tudo isso foi sintetizado com Abaporu."

"Um quadro com essa história foi ganhando importância e fama. E tudo colaborou para ele se tornar o quadro mais importante da arte brasileira", diz Tarsilinha.

Nesta segunda-feira, 16, o quadro ficou entre os assuntos mais comentados no Twitter no Brasil. O motivo foi a comparação feita num tuíte por um internauta, para quem a tela "Batalha do Avaí", de Pedro Américo (1843-1905), "deveria representar a arte brasileira no mundo". Outros usuários da rede social logo se mobilizaram para defender a obra de Tarsila.

Itinerário de uma obra

Mas o Abaporu não seria de Oswald por muito tempo. No fim de 1929, Tarsila e ele se separaram. Na hora da divisão dos bens, a pintora ofereceu ao poeta, de sua coleção, uma obra muito mais valorizada, à época - O Enigma de Um Dia, de Giorgio de Chirico (1888-1978). E ficou com seu homem que come.

Em 1928, o quadro foi exibido pela primeira vez em uma exposição, em Paris. No ano seguinte, integraria as duas primeiras mostras individuais de Tarsila, uma em São Paulo, outra no Rio.

Abaporu voltaria a ser exibido em terras cariocas em 1933. Em 1950, o quadro foi exibido no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo. Dois anos depois, integrou nova mostra no MAM. O Abaporu participaria ainda de duas bienais: a VII de São Paulo, em 1963, e a XXXII de Veneza, em 1964.

Em 1969, o quadro participou de uma turnê por várias cidades brasileiras, na mostra Tarsila: 50 Anos de Pintura. Três anos mais tarde, estaria novamente exposto em São Paulo, na comemoração dos 50 anos da Semana de Arte Moderna de 1922.

Mas nos anos 1960, Tarsila havia vendido o quadro para o colecionador Pietro Maria Bardi (1900-1999), fundador do Museu de Arte de São Paulo (Masp). Conforme Tarsilinha conta em seu livro Abaporu: Uma Obra de Amor, "a pintora nutria uma expectativa de que o quadro passasse a integrar permanentemente o acervo de um museu".

Bardi preferiu fazer dinheiro. Menos de um mês depois da aquisição, revendeu a obra para o colecionador Érico Stickel (1920-2004). Em 1984, o galerista Raul Forbes comprou o quadro por US$ 250 mil - então o valor mais caro já pago por uma pintura brasileira. Em 1995, Forbes decidiu leiloar Abaporu na famosa Christie's, em Nova York. Foi arrematada pelo empresário argentino Eduardo Constantini, por US$ 1,35 milhão - novamente um recorde nacional.

 Foto: Instagram do Museu Malba

 Imagem do museu em Buenos Aires mostra o processo 

de preparo da obra antes de ser embarcada para o Brasil |


Constantini criaria o Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires, o Malba, para o qual doou a coleção. O Abaporu voltaria a ser exibido no Brasil em 2008, em mostra na Pinacoteca do Estado, em São Paulo; em 2011, no Palácio do Planalto, em Brasília; e em 2016, no Rio de Janeiro.

Em abril de 2019, o quadro chegou à casa sonhada por Tarsila: o Masp, a renomada instituição criada pelo homem para quem ela vendeu a obra, Pietro Bardi.

O quadro mais caro do Brasil

Como o Abaporu não está à venda, a referência mais precisa que pode ser utilizada para estimar seu valor é o seguro feito durante exposições. No ano passado, quando esteve exposto no MoMA, o museu de arte moderna de Nova York, a apólice garantia US$ 45 milhões. Questionados pela reportagem, nem o Masp nem o Malba informaram se o valor foi aumentado para a exibição brasileira.

À BBC News Brasil, o argentino Eduardo Constantini, fundador e presidente do Malba, não economizou elogios à obra.

"Sem dúvida é a peça mais representativa e valiosa da arte brasileira. Sua iconicidade cresce ano a ano, como um mito também da arte latino-americana", pontua. "Seu valor estimado hoje é impossível de ser definido, mas é muito superior a US$ 45 milhões."

Tarsilinha revela que, em 2011, a então presidente Dilma Rousseff perguntou a Constantini quanto custaria repatriar a obra. "Eu estava ao lado e ele falou em US$ 200 milhões", conta.

O atual recorde financeiro atingido por uma obra de arte brasileira é outro quadro de Tarsila. A Lua, pintado em 1928, foi comprado em fevereiro deste ano pelo MoMA por US$ 20 milhões.

"As obras dela estão alcançando valores estratosféricos, e isso valoriza os demais quadros também", comenta Tarsilinha. "Tarsila do Amaral está começando a ganhar relevância para o mundo."

Professora de História da Arte da ABRA - Escola de Arte e Design, de São Paulo, a arquiteta Márcia Iabutti considera que, a despeito das cifras das apólices, o Abaporu é uma rara obra "de valor inestimável". "É símbolo de um movimento e carrega todo um contexto junto a ela", comenta.

O marchand e doutor em história da arte Olívio Guedes tem da mesma opinião. Para ele, o quadro é daqueles que "valem cada centímetro". "O mercado tem vida própria e numa eventual negociação futura é ele quem dirá o preço", afirma.

Guedes dá a equação que faz com que um quadro desse quilate seja valorizado.

"Uma obra de arte é notória por vários sentidos: o artista, seus relacionamentos, seu momento histórico e suas relações com o período", resume.

Tarsila foi inventiva quanto às técnicas, era do circuito considerado a elite intelectual brasileira dos anos 1920 e traduziu, com seu trabalho, o contexto cultural de então.

"Somando tudo isso temos seu status e, portanto, sua contabilização financeira", completa Guedes. "Abaporu é uma obra com currículo próprio."

 Imagem: Reprodução 

Autorretrato de Tarsila do Amaral; pintora traduziu,

 com seu trabalho, o contexto cultural de sua época e meio |

O marchand acredita que até o fato de a obra pertencer a uma instituição estrangeira contribuiu para a valorização.

"É status", diz. "Porém, é péssimo não tê-la (no Brasil)."

Guedes compara com o fato de a Mona Lisa, obra máxima do italiano Leonardo da Vinci (1452-1519), estar no francês Museu do Louvre.

Tarsilinha diz que, no íntimo, também gostaria que a obra mais importante da tia-avó estivesse no país.

"Claro que eu ficaria feliz com esse quadro no Brasil. Por outro lado, acho que para a arte brasileira a venda do Abaporu foi importantíssima. A arte brasileira começou a ter um caráter internacional depois disso", avalia, comentando que, sobretudo após a mostra realizada ano passado no MoMA, a obra da artista tem despertado muito interesse em outros países.

"Estivesse recentemente em Paris, no Centro Georges Pompidou, e o diretor me disse ter interesse em uma mostra da Tarsila. A britânica Tate Modern também já se manifestou nesse sentido."

Iabutti lamenta profundamente o Abaporu não integrar nenhuma coleção nacional.

"Fere o orgulho nacional. Não tem o menor sentido", afirma.

Já a crítica e curadora Aracy Amaral, professora de História da Arte da Universidade de São Paulo, tem outra opinião. Para ela, é importante que a obra da Tarsila pertença a uma instituição estrangeira, pela visibilidade.

"É uma honra o Abaporu estar em coleção tão prestigiada como o Malba. Assim como é uma honra A Lua integrar o MoMA", cita. "São coleções do mais alto nível internacional. Nessas instituições, as obras são cuidadas e vistas por um grande público."

Interpretações

Mas o que é, afinal, o Abaporu? A leitura de Oswald de Andrade e Raul Bopp acabou dominando o imaginário: aquela criatura canibal simbolizaria o brasileiro devorando a cultura europeia e refazendo-a ao seu modo. "Era um grupo maluco que falava que a gente pode comer o europeu e depois criar uma coisa nova", diz Iabutti.

"É uma obra muito interessante, porque traduz o sentimento de brasilidade", prossegue a professora. "Abaporu tem uma composição muito limpa, muito concisa. É uma pessoa agigantada, de uma pessoa com pés e mãos muito grandes, como se fosse o trabalhador. É a representação do brasileiro, sendo visto de baixo para cima, com rosto indefinido, como se não fosse uma só pessoa. Tem a cabeça pequena, os braços e as pernas grandes - uma crítica social."

Em 2014, Tarsilinha lançou em livro uma tese inusitada para explicar a obra da tia-avó. Em Abaporu: Uma Obra de Amor, ela traz evidências de que a pintura seja um autorretrato de Tarsila, provavelmente nua, feita como presente ao marido.

Foto: Arquivo pessoal

Tarsilinha faz pesquisas sobre a obra da tia-avó 

Tarsilinha recorreu a pesquisas familiares para corroborar a versão. Ela descobriu que na casa onde a artista morava com Oswald, um sobrado na Rua Barão de Piracicaba, região central de São Paulo, havia um grande espelho que ficava inclinado no corredor que dava para seu quarto-ateliê.

"O reflexo, distorcido por conta da posição inclinada do espelho, mexeu com a imaginação da artista. Foi um estalo. Ela sabia perceber a poesia nos detalhes, tinha esse faro artístico aguçado de quem não enxerga o óbvio nas coisas, mas vai além. Tarsila viu na cena uma oportunidade de criação", relata ela, no livro.

"No espelho, a cabeça da artista aparecia bem pequena. O pé, gigante. Seus olhos de pintora se encantaram com aquela visão inusitada, diferente e, por isso mesmo, interessante."

"Tarsila deve ter gastado muito tempo se observando. Horas, talvez. O pé imenso… A cabeça, minúscula… A boca e os olhos quase sumindo, a mão caída ao lado do pé grande… Que figura diferente!", prossegue. "Aquela imagem lhe parecia provocativa, ousada, perfeita, bem-humorada. Ficou gravada em sua retina, grudada em seu pensamento. Tornou-se uma insistente obsessão."

Um outro indicativo é anatômico. De acordo com relatos familiares colhidos por Tarsilinha, a artista, assim como a figura que aparece no famoso quadro, também tinha o segundo dedo do pé maior do que o dedão.